Onde verdadeiramente se revela a cultura do estupro?

Veio à tona em 03/11/2020, notícia veiculada pelo The Intercept intitulada “julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando jovem”. Segundo noticiado, o empresário André de Camargo Aranha foi absolvido da acusação de estupro, tendo em vista que o Juiz acolheu a argumentação “excrescente” do Promotor de Justiça de que o réu não poderia saber que a vítima não estava em condições de consentir com a relação, caracterizando “estupro culposo”, “crime” esse não previsto em lei. A reportagem trouxe, ainda, outras circunstâncias relacionadas ao caso e um vídeo da audiência de instrução e julgamento, ilustrando a forma como a vítima foi tratada pelas autoridades envolvidas no caso e pelo advogado da defesa.

A partir disso, iniciou-se um movimento nas redes sociais, sintetizado pelo dizer “estupro culposo não é crime”, criticando a absolvição do acusado.

Não é a primeira vez, nos últimos anos, que um caso de crime contra a dignidade sexual ganha tamanha repercussão social. E não é para menos, considerando que esse tipo de delito causa repulsa, revolta, sentimentos ainda aumentados pelo modo insipiente como o tema é tratado pela legislação brasileira (e pela sociedade em geral).

Segundo autores da sociologia jurídica, o Direito pode ser visto como um fato social, ou seja, as normas jurídicas que conhecemos decorrem da realidade social na qual se inserem. A partir disso, considerando que nosso Código Penal é de 1940, pode-se imaginar as inúmeras alterações que foram necessárias ao longo dos anos na tentativa de acompanhar as mudanças dos paradigmas sociais.

Muitas dessas mudanças relacionam-se ao tratamento da mulher e dos crimes sexuais em geral. Exemplificativamente, cita-se o art. 215 do Código Penal, o qual inicialmente dizia ser crime “ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”, redação essa alterada em 2005 para excluir o adjetivo “honesta” e, novamente, em 2009, vigorando até hoje da seguinte forma “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”.

Essas alterações são bastante representativas dos valores sociais de cada tempo e da tentativa do legislador de acompanhá-los. É dizer, não podemos olhar para essa “linha do tempo” do art. 215 e acusar o legislador de 1940 de marginalizar uma parte das mulheres, pois eram esses os valores sociais que existiam naquele momento.

Contudo, não podemos deixar de observar que a mudança social precede o Direito, pois a exclusão do adjetivo “honesta” só ocorreu em 2005, sendo que muito antes a sociedade já não mais considerava que apenas a mulher “honesta” merecia proteção, assim como muito antes de 2009 já se considerava que não só mulheres mereciam-na.

Há, ainda, um outro ponto a ser considerado. Quando falamos em “realidade social” ou em “mudanças sociais”, temos a impressão de que é um processo linear contendo uma ruptura abrupta entre um paradigma e outro, como se os valores vigentes em um determinado momento compusessem um todo uniforme que é clara e naturalmente suplantado por outro todo uniforme, o que não é bem assim. Na prática, valores antagônicos convivem simultaneamente, tornando ainda mais difícil identificar os anseios sociais, o que ilustro a partir de um outro exemplo.

Recentemente, deparei-me com o relato de uma mulher sobre o dia que foi a uma consulta médica e finalmente pôde atualizar seu cadastro, deixando claro que não possuía “nome de casada”. O mais curioso é que ela nunca assim o declarara, isso apenas foi presumido pela secretária, afinal de contas espera-se que a mulher adulta seja casada, tenha filhos e adote o sobrenome do marido.

Embora pareça apenas uma questão formal de denominação, é muito mais do que isso, pois o nome é considerado atributo da personalidade, o que significa que se relaciona à identidade do sujeito, à forma como ele se vê, se coloca perante a sociedade, ao seu “ser”. Assim, a supressão do “nome de solteira” e a adoção do “nome de casada” significa substituir um elemento de identidade da mulher por um do homem.

O Código Civil de 1916, estatuído pela mesma sociedade patriarcal da qual se originou o Código Penal de 1940, chancelava esse processo ao prever, em seu art. 6º, III, que ao casar a mulher perdia sua capacidade plena, passando a ser relativamente capaz, submetida ao pátrio poder do marido. Como consequência, passava a adotar o nome do marido (art. 240) e podia perder esse direito se fosse considerada culpada em ação de desquite (no caso de adultério, por exemplo – art. 324).

Desde 1977, com a Lei do Divórcio, está claro que é facultativo o acréscimo do nome do marido ao da mulher e, desde 1988, com a Constituição Federal, as diferenças de gênero não podem mais ser causa de discriminação. Além disso, o casamento perdeu sua posição de exclusividade na formação do vínculo familiar e passou-se a admitir a existência de diversas tipologias de famílias, como a convivencial (formada a partir de união estável), a monoparental, a homoafetiva, a poliafetiva, a unipessoal e qualquer outro arranjo que se apresente.

Foto por Andrea Piacquadio em Pexels.com

Mesmo assim, persiste no imaginário social a expectativa de que a mulher adulta será uma pessoa casada, com um sujeito do sexo masculino, adotando “nome de casada” e com filhos, evidenciando a convivência simultânea de valores antagônicos em um mesmo espaço temporal, o que acaba freando muitas mudanças no tratamento do tema.

E o que tudo isso tem a ver com a notícia veiculada pelo The Intercept? É que isso ilustra que as mudanças na sociedade são lentas, descompassadas e que, para piorar, o Direito está sempre atrasado. Assim, é importante que casos como esse ganhem repercussão, para que o legislador e os Tribunais consigam ouvir claramente os valores que emanam do contexto social.

Isso não significa, contudo, que devamos partir para uma sociedade em que o revanchismo penal seja o remédio. É dizer, reconhecer a insuficiência do tratamento dado à mulher e aos crimes sexuais não significa que todos os processos envolvendo esses crimes devam terminar em condenação e muito menos que todos aqueles que são processados por estupro são culpados.

Há um ditado que diz: dois erros não fazem um acerto. Não podemos querer defender a vítima violando os direitos do réu. Se não há prova do dolo e se no Código Penal não existe estupro na modalidade culposa, o único caminho legal é a absolvição, exatamente como ocorreu no caso em apreço, garantindo-se à vítima o direito de recorrer da sentença para que as provas sejam reapreciadas em segunda instância.

Veja, o ponto principal não é se Capitu traiu ou não o Bentinho, é sobre tudo o que foi construído em torno dessa suposição. Da mesma forma, nesse caso, o ponto principal é tudo o que aconteceu até se chegar à absolvição do réu, não a absolvição em si, até mesmo porque sem a análise do processo não é possível avaliar o acerto dessa decisão.

Em outras palavras, se o processo fosse conduzido da forma mais digna possível e, ainda assim, o julgador concluísse pela absolvição exatamente como o fez, por mais que se discordasse de sua posição, não haveria nada de errado, pois não é aí que verdadeiramente se revela a cultura do estupro. Se não aí, então onde?

Nesse caso, no descaso, na violação à dignidade da vítima ao tolerar-se a presunção de seu oportunismo, na forma como foi tratada em audiência pelo advogado da defesa, na omissão do Promotor de Justiça e do Magistrado diante desse tratamento, no uso de fotos suas sem relação com o crime para justificar a conduta do réu, como se ela tivesse que preencher a ficha de “mulher honesta” para poder ser vítima de estupro.

Nenhum desses problemas teria deixado de existir ou seriam menos graves se a sentença tivesse concluído pela condenação.

Se não soubermos apontar onde estão os verdadeiros problemas, fica mais difícil identificar quais valores queremos ver prevalecer em nossa realidade social. O clamor social pelo tratamento digno das mulheres vítimas de crimes sexuais não é um apelo por sentenças condenatórias, é um apelo por liberdade e igualdade, as quais não podem ser suprimidas nem para um lado e nem para o outro, sob pena de aniquilar os próprios direitos cuja proteção se pretende garantir.

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