
Hoje me vi tomada por um conflito que há muito não me acometia, mas que já aconteceu inúmeras vezes antes. Encontro-me em um contexto de isolamento social, com poucas atividades externas. Precisei sair para uma consulta e neste contexto isso se torna um evento.
Sinto falta dos compromissos sociais, de circular pela cidade, do trabalho presencial, cansada de estar longe de tudo e de todos, com a visita ao médico me veio o desejo de me arrumar um pouco mais, ressaltar minha feminilidade, me sentir bonita. Começo a olhar algumas peças de roupa e me decido por uma blusa e uma saia.
Me visto e ao olhar a imagem refletida no espelho sinto um encantamento por aquela mulher que me retribui o olhar sorrindo e que há muito tempo não a encontrava. Me deixei seduzir pela combinação de cores, a pintura nos olhos (é o que aparece para além da máscara), a cascata de cachos que caem pelos ombros e pelas curvas que me pareceram belíssimas.
Neste momento, mesmo diante desta mulher que tanto me agrada, sinto ressuscitar dentro de mim um antigo conflito, que julgava superado: “será que esta roupa não está marcando demais o meu corpo? Está sensual? Chamará atenção?” Assim vejo desfilar em minha mente uma série de questionamentos desta qualidade.
Já passei por isso várias vezes ao longo dos meus anos de vida, sendo que na maioria fui vencida pelo desconforto de achar que estava mostrando demais o meu corpo e por isso terminar trocando de roupa, optando por peças mais ‘discretas’. Mesmo que isso fosse contra o meu desejo e o meu gosto do momento. Já havia superado esse tipo de dúvida mas talvez os meses sem sair de casa contribuíram para seu retorno.
Hoje tenho um biotipo com mais curvas, não sou magrinha. Incomodada com meu corpo, quando era magrinha tomava vitaminas e chás para ter mais curvas. Quando as curvas apareceram achei que eram demais e por isso fiz dietas malucas, jejum, tomei medicação, milhões de exercícios e até promessas para emagrecer. Quando enfim compreendi o meu corpo, aceitei que nunca vou conseguir ter perna fina ou bunda pequena.
Por que me questionar sobre a escolha de uma roupa que vejo e gosto do resultado? Se marca ou não meu corpo, qual o problema?
O problema está em toda construção social a respeito de nossos corpos de mulheres.
Certa vez, estava andando tranquilamente a caminho de casa, em uma tarde ensolarada, numa rua muito movimentada e de repente sinto um tapa na bunda. Reagi assustada e vejo um rapaz passando rapidamente de bicicleta. Fiquei ali indignada, estarrecida, tomada de um furor que se tivesse condições de chegar perto daquele ser, seria capaz de destruí-lo tamanho ódio. Na sequência um sentimento de desamparo diante da invasão do meu corpo e a impotência de fazer alguma coisa a respeito.
Essa foi apenas uma situação de violência das milhões de outras às quais nós mulheres somos submetidas diariamente e que faz com que tenhamos que pensar todos os dias no que vamos vestir, como vamos nos portar, o que comunicamos com nossos corpos e comportamentos, como seremos interpretadas, se as gordurinhas transbordam pela roupa, se as celulites estão evidentes, etc…
Mesmo que muitos homens achem que estão elogiando nos chamando de gostosas, com olhares famintos, a mim não é nada agradável. Ser corteja, elogiada pode ser bem interessante, mas sinceramente, dispenso esse tipo de cantada vulgar e não estou mais nessa de trocar a roupa que me agrada por conta dessa tipo de situação.
Não que eu tenha deixando de me incomodar. Ainda temos que batalhar muito para que nossos corpos tenham outro tipo de inscrição nesta cultura atual, por isso resistir a tanto desrespeito, mesmo que hajam momentos de cansaço, é muito necessário.
Esse texto é um convite à reflexão.
Como você tem visto essa cultura na qual um homem acha que pode tocar, violar, invadir o corpo de uma mulher sem seu consentimento, mesmo que seja com palavras?
O que você tem feito para mudar isso?
Olho novamente a mulher refletida no espelho que transborda beleza e sensualidade, sorrio e saio!